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Provisoriedade

A provisoriedade nos acomete, insiste em se fazer presente, em nos revelar a todo instante o quanto tudo é fugaz. A própria vida se esvai, às vezes, de modo completamente inadvertido. As emoções e os pensamentos humanos como grandes sentinelas, testemunhas e algozes da efemeridade das coisas. O amor, uma das maiores vítimas dos efeitos da passagem do tempo, das circunstâncias, dos momentos, novamente, da volúpia dos afãs sentimentais, ora permeando corações tocados pela audácia em se expressar, ora pela falácia em menosprezar. Os laços entre pessoas, vitalizados por sentimentos nobres e verdadeiros, também acabam por se fortalecer pela ação do tempo.

 

“Provisório é o humano. Sendo, pois, o heroísmo um atributo humano, já vem marcado pela provisoriedade.” Etel Frota.

 

Na premissa da provisoriedade, a escritora Etel Frota empresta seu talento à obra “O herói provisório”, publicada pela Travessa dos Editores em 2017. O contexto se desenvolve no inspirador cenário da Ilha do Mel e de Paranaguá, valorizando belos cartões postais do Paraná e do Brasil. Etel toma por base os fatos reais que envolveram o Episódio Cormoran, ocorrido em 1850, incluindo o agente principal dos acontecimentos históricos, o Tenente Joaquim Ferreira Barboza. O enredo do livro não tem a pretensão de ser uma reprodução dos acontecimentos de natureza militar, entretanto, mergulha no contexto da época e dos fatos reais e é tão feliz na construção da dinâmica emocional e das ações dos integrantes da trama que cada motivo, cada argumento, poderiam perfeitamente ter sido vivenciados. Ironicamente, o contraponto da provisoriedade pode emergir permeado pela atemporalidade.

 

“De certa forma, é disto também, das relações indeléveis, que trata esta narrativa.” Etel Frota.

 

Personalidades distintas, personagens cheios de diferentes e particulares emoções e que conferem, por vezes infectam, a dinâmica das relações com suas motivações e anseios, como a doce escrava Ignácia, personagem que mais parece um arquétipo feminino da beleza, da graça, da leveza e da generosidade, além da amorosa abnegação, nos tempos de hoje parece ter concedido um pouco de si às mulheres do mundo. E quem não carrega e zela por causa ou propósito qual uma criança em seu colo? A Ignácia carrega.

 

Retratando uma sociedade brasileira há mais de 150 anos, é possível reconhecer angústias e temores que ainda hoje nos remetem do conforto ao desassossego na inquietude da alma humana.

 

“Contemplativa e silenciosamente, tratava de economizar o corpo do movimento que invariavelmente lhe trazia, como consequência, culpa, remorso e um inexplicável medo da morte”. Etel Frota.

 

Não consigo imaginar a simples leitura de um livro, qualquer que seja, sem um impacto ao leitor, um choque de realidade ou simples percepção de outros cenários, situações ou demandas ou ainda despretensioso contato de diferentes pensamentos, motivações e anseios. A verdadeira vida não nos possibilita permanecer insensíveis a ela.

 

“- Que Deus me permita esquecer os gritos dos companheiros feridos deixados para trás nos reveses.

Desde que voltara à ilha, o cheiro do mar vinha se mostrando capaz de tirar das suas narinas – por curtos períodos de tempo – o cheiro da morte que lhe fazia companhia há tantos anos.” Etel Frota.

 

Para a maioria de nós que nunca viveu situação de tão estremado rigor, quanto este apresentado no livro, o contato com a sombra da morte, do desespero, do flagelo humano, de que outro modo poderíamos nos tornar empáticos ao sentimento se não por meio da literatura? Não nos é permitido passar por este mundo sem aprender com ele, sem apreender dele o que se tem obrigação de compreender, no mínimo, se solidarizar e internalizar.

 

A leitura de obras desta natureza, aquilatadas pela qualidade real em trazer fragmentos de vidas possíveis e factíveis, sempre me intriga pelo dom abnegado do autor, arregimenta seu talento, oferece seu ímpeto criativo maior, além de pesquisas e consultas inúmeras para ambientação do contexto, ao livro, este sim tornado a causa que lhe abarca os recursos.

 

“Era sua função, essa, de ser carne para o fogo inimigo, a tempo de que o destacamento se salvasse e se reorganizasse, caso o terreno não estivesse propício ao avanço. O medo que sentia nesses primeiros combates o fez, intuitivamente, se aproximar e se interessar pelo funcionamento dos canhões – a artilharia avançava mais resguardada.” Etel Frota.

 

No rol dos assombros que interagem com a ideia da provisoriedade, tão presente nesta obra da Etel, perpassa a mão invisível do destino, o toque do inesperado que vem, não se sabe de onde, e alicerça vidas, interfere, determina, enquanto a cabeça rumina sem nunca, ao certo, entender.

 

“E assim meu amigo, sentei praça e passei vinte e três anos lutando em uma guerra que mal compreendia. Nem pai militar, nem patriotismo, muito menos espírito de aventura. Eu estava lá, quieto no meu canto, veio o destino e traçou uma estrada na minha frente, eu segui esse caminho e pronto, aqui estamos.” Etel Frota.

 

A nossa vida segue repleta de passagens intrigantes ou tão banais que podem se chocar e se confrontar com as reflexões deste herói provisório, posto que igualmente nos assola a provisoriedade.

 

“Quando se chega de uma guerra, as pessoas que não estavam lá, que só ficaram sabendo dos feitos, dos acontecidos, quando vêm falar sobre o assunto o fazem como se as vitórias e derrotas não tivessem tido cheiro, sons, dores. Cada batalha que se ganha ou que se perde é um pedaço de si próprio que se larga para trás.” Etel Frota.

 

Usando-se da voz de um poeta quase moribundo, a autora lança mão falas ácidas e cheias de verdades disfarçadas no afã do recorrente excesso de álcool do seu emissor.

 

“A boca do poeta é a fogueira onde os cidadãos de bem jogam a lenha das suas inconsistências e sopram.” Etel Frota.

 

A provisoriedade também permite um mergulho na vida alheia com bons olhos, com benevolência, com gesto de quem anseia se redimir, perdoar a si mesmo por ser tão infalivelmente provisório. Obrigada, Etel, quando de nossa conversa em 2018, não poderia imaginar o teor perene da provisoriedade de tua obra em minha vida.

 

“Em silêncio, sentar-se-á, na soleira da cozinha, tendo por testemunhas apenas as galinhas criadas no quintal. Sorverá, aos pequenos goles, sua sopa. Depois, de olhos fechados, raspará até o fundo, entre suspiros de prazer, o pote de ambrosia.” Etel Frota.

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Autoria: Renata Regis Florisbelo

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