A sociedade se questiona sobre legalização do aborto. A questão que se põe é da descriminalização ou despenalização, ligada a bases sociais e políticas das quais não pode ser separada. Primeiro, vivemos num Estado laico; segundo, os valores de crentes ou de políticos não podem se impor à toda a nação.
Descriminalizar consiste em reconhecer atípico um fato. Ora, é impossível que, sem uma dose de hipocrisia, não se compreenda que a descriminalização do aborto não significa a sua liberação, muito menos o seu estímulo ou o seu legalizar.
Permanecerá típico, imoral, indecente ou o que quer que se queira do ponto de vista moral, ético e reprovável nas comunidades de fé.
Descriminalizar consiste em retirar da esfera jurídica o ato de interromper voluntariamente a gravidez, deixando exclusivamente na esfera da saúde e da consciência da mulher, o exercício dos direitos reprodutivos de levar a termo a gravidez. Visa a supressão de aplicação da pena, quando a interrupção é praticada pela gestante ou de acordo com sua vontade.
Permanecerá como ilícito ou crime nos casos em que, vítima de qualquer violência, a mulher sofra o aborto contra a sua vontade e sua consciência.
No entanto ao confundirmos a interrupção voluntária da gravidez com o aborto, provocamos uma sanção moral e religiosa que se impõe arbitrariamente a toda a população.
Defender o direito da mulher de escolher sobre o prosseguimento ou não de uma gravidez está no campo das difíceis e dolorosas decisões que a mulher, e só ela, pode tomar quanto à sanidade do ato da maternidade.
Nos artigos 124 a 127 do Código Penal está inscrito o tipo penal aborto. Por tal, no voto do Ministro Cezar Peluzo, do qual discordamos em tese, quando alinhava inexistir motivo ético ou jurídico que justifique a decisão do STF de permitir o aborto de fetos anencefálicos, não foi possível autorizá-lo. Na ADPF 54 fica claro o repúdio à criminalização, ao sofrimento de milhares de mulheres e denuncia a hipocrisia reinante no Congresso Brasileiro que se nega a cumprir com o seu dever de mudar a lei para acompanhar o desenvolvimento da sociedade.
É direito fundamental e da dignidade humana a defesa da saúde mental e física da mulher.
Com Ronald Dworkin concordamos: Gostaria muito de convencer essas pessoas, caso estejam dispostas a ouvir-me, de que elas compreenderam mal o fundamento de suas próprias convicções. Ou, de qualquer modo, de que existe um enfoque convincente da controvérsia moral que lhes permitiria continuar a acreditar, com plena convicção, que o aborto é moralmente condenável, mas também a acreditar, com igual fervor, que as mulheres grávidas devem ser livres para tomar uma decisão diferente se suas próprias convicções assim o permitirem ou exigirem.
Compreender a gravidez como direito da mulher, e defende-la como uma escolha possível, torna incompreensível a aplicação do tipo penal aborto à interrupção voluntária da gravidez.
A pena a uma mulher que não pode concluir sua gestação produz duas situações absurdas: primeiro, o valor vida fetal se opõe à vida materna, e se impõe como valor absoluto; segundo, a pena, no caso do aborto, é meramente castigo que estigmatiza, desvaloriza e torna culpada de algo brutal psicológica, moral e socialmente.
Uma leitura atenta do aborto como problema social e de saúde denuncia que a atual situação é absolutamente insustentável. Que a penalização só se justifica na confusão entre Estado e Igreja, e pela covardia do legislador, que não cumpre com o dever de dar à nação brasileira uma legislação laica!
Laércio Lopes de Araujo é médico e bacharel em direito pela UFPR, exerce a psiquiatria há 25 anos