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In pulverem reverteris

Laércio Lopes de Araujo ([email protected])

 

Estamos na quarta-feira de cinzas, e então, ao pó estamos voltando. Ao pó do esquecimento, ao pó da exploração de impostos e contribuições, ao pó do anonimato e da escravização em benefício dos mandarins de plantão!

O carnaval é festa popular, legítima e transgressora que traz felicidade e olvido dos males por alguns dias. Caracteriza-se pela inversão de classes, gêneros, raças enfim, uma festa realmente democrática e popular.

Sua origem tem uma discussão intensa, mas acredita-se que no ano 590, o papa Gregório incorporou o Carnaval ao calendário das festas cristãs.

A Quaresma, período de quarenta dias de jejum e santificação entre a quarta-feira de cinzas e a páscoa, é o período de expiação de nossos abusos na festa que dá adeus à carne.

Assim, desde suas origens o carnaval era uma festa transgressora onde as pessoas comiam carne até vomitar, faziam sexo proibido, invertiam hierarquias e bebiam até cair.

A partir da Quarta-Feira de Cinzas, os fiéis iam à igreja para receber as cinzas na testa, enquanto ouviam o padre dizer em latim: Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris  (Lembra-te homem, que tu és pó e ao pó voltarás).

No entanto este ano, tivemos a surpreendente discussão sobre a chegada do politicamente correto às marchinhas de Carnaval. As letras de algumas delas têm sido questionadas por serem consideradas machistas, homofóbicas e racistas.

Um exemplo é a música A faixa amarela, cuja letra diz que um homem vai presentear a sua amada e sugere que, se ela tiver alguma relação extraconjugal, vai sofrer castigos físicos e morais.

Ainda, músicas como Maria sapatão ou O teu cabelo não nega. No Rio de Janeiro, alguns blocos de Carnaval recusam-se a tocar marchinhas desse tipo, mas o povo não cansa de votar em Cunhas, Pézões, Cabrais e Garotinhos. Por que não cuidamos de ser politicamente corretos quando tratamos de votar?

É neste contexto que surge Preta Gil, filha de Gilberto Gil e uma das cabeças jovens mais lúcidas, que saiu em defesa de algumas marchinhas clássicas, como a “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”, depois de serem banidas em blocos do Rio e de São Paulo, acusadas de “preconceituosas” e “politicamente incorretas”.

Disse a cantora:

“A gente precisa tomar muito cuidado porque as pessoas, hoje em dia, levam as coisas a ‘ferro e a fogo’. Por exemplo: como é que eu não vou cantar ‘Maria sapatão, sapatão…” ou “olha a cabeleira do Zezé’?! Eu duvido se tem alguém gay que se sentiu ofendido por essas músicas. Eu duvido, porque isso faz parte da nossa história, da nossa cultura, a gente não pode apagar a história”.

Preta afirmou que essas músicas foram feitas em épocas onde tudo era tabu, e que as marchinhas serviam para introduzir, de maneira natural, certos assuntos, como a homossexualidade, a condição da mulher e a repressão da sexualidade, permitindo, no momento de diversão produzir aceitação.

Disse que se seguirmos o padrão, as pessoas terão de lhe chamar de ‘Afrodescendente Gil’, e não ‘Preta Gil’.

“Gente, é óbvio que pode. O mundo evoluiu, a sociedade evoluiu, tem consciência do que é homofobia, do que é agressividade e a violência… a distinção de pessoas por causa da cor, raça, religião, sexo. Isso, sim, é grave. As músicas não trazem nenhum mal à sociedade. Cantei no meu bloco e vou continuar cantando”, protestou.

Nesta quarta-feira de cinzas vamos refletir mais sobre a natureza do carnaval e perceber que este é o momento de transgredir, rir a velas soltas, permitir violações verbais e divertir-se. Na urna a coisa é séria, então nada de ser politicamente incorreto na hora de eleger governantes, senão depois, vamos fazer parte dos blocos do Sapo Barbudo ou do Nosferatu, ambos sedentos por impostos.

 

 

* O autor é médico e bacharel em direito formado pela Universidade Federal do Paraná, atua em psiquiatria há 27 anos, Mestre em Filosofia e especialista em Magistério Superior.

 

 

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