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Casa que recorda

Cássio Murilo
A Casa da Memória preserva o acervo histórico-documental de Ponta Grossa

A velha senhora olhou pela janela, nesgas de sol irrompiam pela sala através das cortinas de renda amareladas pelos anos. Da cadeira, que já fora de balanço, o que agora embala são as lembranças. Os trens de passageiros chegando magnificentes na estação, damas e cavalheiros distintos, nos babados longos e nas calças bem cortadas embarcavam para novas alçadas. As recordações vêm como imagem difusa, ganhando corpo e cores na menina de laçarote e vestido branco. Sim, agora estava claro, era ela, a velha senhora, que volta ao passado dando a mão à mãe, na plataforma de embarque da 1ª Estação Ferroviária de Ponta Grossa. No jornal da capital, a manchete, em março de 1894, anuncia, inaugurada a estação que ao mundo nos remeteria.

Os olhos cansados contemplam do alto, a bisneta ajeita a camisola longa da bisavó que, ainda na cadeira, segura a xícara de chá e pergunta pelos trilhos. A jovem, uma adolescente, mal se lembra dos trilhos, mas sabe da anciã em memória centenária. Chega perto da cadeira, abaixa-se na altura dos ouvidos da senhora e conta que agora a antiga estação, a primeira da cidade, tornou-se a Casa da Memória, local destinado a preservar o acervo histórico-cultural de Ponta Grossa e dos Campos Gerais.

A xícara balança, tão trêmulas as mãos, que às vezes sucumbem ao peso de qualquer objeto. Os braços da Alice vêm em socorro, salvando a porcelana delicada do embate ao chão.

– Quando foi isto que eu não vi?

Alice tem sorriso doce e paciente e conta que, em setembro deste ano, 1995, foi fundada a casa, no suntuoso prédio que já havia sido tombado como patrimônio do Paraná. Na gaveta da mesa da sala, daquelas raras com pregos de madeira, a bisneta apanha o velho álbum de fotos e mostra para a bisa. A praça da antiga catedral, o desfile de Sete de Setembro de 50 anos atrás, a Avenida Vicente Machado, no começo do século XX, com suas árvores, carros e pedestres. Os olhos da senhora, cada dia mais nubilosos em cenas sobrepostas, confunde os momentos, a memória alardeia os idos tempos e sempre volta na estação glamourosa. Num ímpeto, fitou a construção e exclamou:

– Veja o trem! Preciso alcançá-lo, minha hora já chegou.

Os braços caíram ao lado do corpo, os lábios entreabriram-se em expressão de encanto. Exclamação leve de quem da vida só as reminiscências ainda remetem. Os olhos fecharam, para sempre.

Passados vinte anos, Alice passeia pela praça, leva Sofia e Henrique, que nas mãos carregam o precioso pacote de fotos. As crianças são as mais animadas, entram pelo prédio da Casa de Memória e contemplam afoitos e ávidos por tudo.

As belas fotos, memórias da família, agora passarão a contar suas histórias compartilhadas com todos. Acervo que nunca é individual, em cada antepassado o elo entre gerações que se dão as mãos.

No tempo, a cada sobressalto, um vazio no fluxo da memória se forma. A serenidade de quem carrega os fatos com leveza, carreia a qualidade salutar para a lembrança decorrente. Compreensão e engrandecimento que se deixam preencher onde era tormento.

 

Autora: Renata é escritora, integrante da Academia de Letras dos Campos Gerais, da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes e do Centro Cultural Prof. Faris Michaele.

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