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UTI’s cheias em Ponta Grossa sobrecarregam profissionais da saúde

Foto: Divulgação/Unimed PG

O cardiologista Marcos Marochi chega ao Hospital Geral Unimed de Ponta Grossa pelo menos 15 minutos antes do início do plantão. Tempo para trocar de roupa duas vezes e entrar no espaço mais isolado do HGU: a UTI Covid-19. A carga horária pode chegar a 12 horas sem qualquer contato com a vida lá fora.

Nos primeiros minutos pega as informações sobre cada um dos internos. Foram mais de 300 do início da pandemia até o começo de dezembro que passaram pela unidade covid. Lá dentro trata de cada um, analisa, altera medicação, se reúne com a equipe, volta e se depara com a instabilidade. A doença que amedronta torna o quadro clínico do paciente incerto. Faz nova avaliação. Tudo inédito, apesar da experiência de 16 anos de medicina.

A oito quilômetros dali, Erika Rodrigues é preceptora na clínica covid do Hospital Universitário Regional (HU-UEPG). Cumpre intervalo de 15 dias na clínica médica e outros 15 na clínica covid. Ela e mais 216 profissionais da saúde atuam nas alas específicas para a nova doença. Em 14 anos de carreira nunca tinha vivenciado algo semelhante.

Mas a rotina de Erika não termina ali. Dentro de algumas horas ela poderá estar junto ao cardiologista Marcos Marochi, primeiro personagem desta reportagem, pois ela também cumpre plantão na UTI covid do HGU.

Os dois são apenas os exemplos sacados entre centenas de profissionais de saúde de Ponta Grossa que enfrentam essa anormalidade há nove meses.

O novo ‘normal’ dos médicos

Todos os plantonistas que tratam a doença causada pelo novo coronavírus costumam antecipar a chegada nos respectivos hospitais. Existe um ritual que precisa ser cumprido com rigor antes do trabalho.

“Você troca a sua primeira roupa, deixa a roupa com que foi trabalhar em um quarto especial e atravessa para um local de ‘pré-UTI covid’. Ali troca-se novamente a roupa e coloca-se a segunda roupa privativa do hospital”, explica o cardiologista Marcos Marchiori.

Dr. Marcos Marochi é um dos plantonistas responsáveis pelo tratamento da covid. Foto: Aquivo Pessoal

A vestimenta vai uma por cima da outra em sequência, inclusive com repetição de itens. É o ‘uniforme’ obrigatório a cada ida e vinda.

“Há uma bota específica, máscara, capacete, touca, primeiro avental, segundo avental, primeira luva e segunda luva. Usamos tudo após esterilização em cada momento”, conta o plantonista, que obrigatoriamente precisa tomar banho antes de deixar o trabalho.

A intenção é afastar o risco de contágio entre os profissionais e não liberar vírus no lado externo.

Devidamente paramentados na entrada, os médicos e enfermeiros que estão em mudança de turno trocam informações sobre os pacientes hospitalizados. São esses detalhes que vão auxiliar no tratamento da doença ainda considerada pouco conhecida.

Cada UTI é composta por uma equipe com um médico, um enfermeiro, um fisioterapeuta e pelo menos cinco técnicos de enfermagem, além do pessoal de limpeza e administrativo. Cada equipe pode chegar a atender até dez pacientes em situação crítica por plantão.

Parte da equipe de plantonistas da UTI covid do Hospital Geral Unimed. Foto: Arquivo Pessoal

“São pacientes graves e que demandam muita atenção. O quadro fica instável a qualquer momento”, observa o Dr. Marochi sobre a perversidade do Sars-Cov-2. O cardiologista chegou a atuar na linha de frente do H1N1 no Hospital de Clínicas, em Curitiba. “Foi grave, mas nada comparado com agora. A situação é mais complexa tanto na agressividade do vírus quanto na transmissão”.

Dr. Thomas

Uma figura central nos atendimentos do Hospital Universitário Regional e do Hospital Geral Unimed é o Dr. Thomas D’Haese. Ele está presente em grande parte das reuniões nas quais médicos, enfermeiros e fisioterapeutas propõem tratamentos aos pacientes das duas unidades hospitalares.

O médico intensivista é responsável tanto pela UTI covid do Universitário quanto da Unimed. É na coordenação dele que se deposita a confiança de familiares dos pacientes mais graves da doença.

Dr. Thomas D’Haese coordena tanto a UTI covid do HGU quanto do Universitário. Foto: Unimed PG

Mas a circunstância é diferente da ficção, na qual é possível encontrar super-heróis. Os profissionais da saúde sentem receios, medos, cansaço e exaustão. Os atos heroicos são acompanhados de sobrecarga profissional, o que afeta as relações mais simples do dia a dia.

“Toda essa situação interferiu muito nas minhas relações familiares e pessoais. Eu, inclusive, morei um período fora de casa por medo de me contaminar e contaminar a minha família”, relembra o intensivista.

Exaustão

“Mas eles não estão fazendo mais do que a obrigação. É o trabalho deles”. Comentários como esse aparecem nas redes sociais e ferem a dedicação humana dos profissionais da saúde diante do desconhecido. O tratamento da covid-19 ainda é cercado de ‘tiros no escuro’, o que amplia o cansaço da linha de frente.

Em setembro, uma pesquisa nacional da PEBMED mostrou que 83% dos profissionais de saúde apresentavam sinais da síndrome de Burnout. Ou seja, o esgotamento profissional.

Paramentação dentro da UTI covid é um dos transtornos necessários. Foto: Divulgação/Unimed PG

“Mas o trabalho não é o mesmo de uma UTI comum?”, perguntaria um leigo. Há nuances que o tornam bem diferente e estressante, conforme apontam profissionais que atuam em Ponta Grossa.

“Há necessidade de uso do EPI para o contato com os pacientes, máscara o dia todo, avental, luvas, faceshield. Isso é cansativo, incomoda, além do calor que passamos muitas vezes. Existe risco de contaminação da equipe. Então trabalhamos com medo de nos contaminar com a doença. Os pacientes com covid-19 são extremamente graves, demandam muito trabalho e atenção. É uma doença que tem alta mortalidade. Então há uma sensação de frustração muito grande em cada perda”, pontua o intensivista Thomas D’Haese.

A Dra. Erika Rodrigues vai na mesma linha. “A paramentação, o receio de contaminação, o número de pacientes e a gravidade dos pacientes de UTI”, cita ao ser questionada sobre o que torna o trabalho na UTI covid mais exaustivo.

Dra. Erika Rodrigues atua nos dois hospitais. Foto: Arquivo Pessoal

E o número de leitos que precisam ser disponibilizados para os pacientes da covid-19 só crescem. No último final de semana, o HU-UEPG ampliou para 78. Quatro leitos de emergência foram acrescentados para as equipes de saúde tomarem conta.

Afastamento

A rotina de cansaço mental e físico fez o cardiologista Marcos Marochi ficar um período afastado da UTI covid-19 do HGU. Em outubro, quando o número de contaminações havia caído em Ponta Grossa, ele pediu a saída provisória. O médico conta que não apresentou quadro grave e que não chegou a ter a síndrome de Burnout, mas optou por se precaver e se dedicar por mais tempo à clínica que possui.

“Não há momentos de alívio. Temos pacientes continuamente graves e uma rotina extremamente cansativa num local fechado e num local em que você não vai ter momento para sair do stress. É um stress após outro stress. São pacientes que necessitam de cuidados continuamente. É como qualquer UTI, mas, no caso da covid, o paciente instabiliza a qualquer momento. E isso ocorre de maneira frequente. Causa um cansaço bastante grande e nos afeta. A UTI covid é fechada e isolada de todo o resto do hospital e isto deixa ainda mais difícil a situação”, conta.

Apesar do pedido de saída provisória, o cardiologista voltou às atividades na UTI covid assim que o cenário da doença piorou em Ponta Grossa. Nas últimas semanas, a cidade vem batendo recorde de casos diários.

Zonas da covid ficam isoladas do ‘mundo externo’. Foto: Aline Jasper

“Voltei a ajudar, embora tenha minha clínica e pacientes da cardiologia, me coloquei à disposição para ajudar nesse momento de dificuldade como acho que qualquer médico e profissional de saúde deva ajudar”.

Tratamento pesado

É unânime entre os profissionais que pacientes com covid-19 apresentam alteração de quadro clínico de forma repentina. Em Ponta Grossa, os médicos aplicam tratamentos comprovados cientificamente. Os recursos usados também interferem no cansaço diário de quem está na linha de frente.

“Estamos fazendo com o que funciona, que é basicamente saber utilizar a ventilação mecânica de maneira adequada, os corticoides em doses estabelecidas, os anticoagulantes, algum outro fármaco tipo colchicina e a famosa pronação [técnica que consiste em virar o paciente de bruços]”, aponta o Dr. Marochi.

O tratamento da covid-19 exige mais especialistas do que o senso comum imagina. Diferente do que se pensava no início da pandemia, a enfermidade pode afetar mais do que o sistema respiratório.

“Essa doença não atua só no pulmão. Ela faz insuficiência renal, então esse paciente dialisa. Um melhora, mas outro piora, por exemplo. A doença faz AVC, faz parada cardíaca, faz arritmia e doença de pele. São vários tipos de manifestações no organismo”, reforça o cardiologista.

Diferentes especialistas atuam nas UTI’s covid em Ponta Grossa. Foto: Aline Jasper

Duas perguntas

Qual a história mais marcante que viu na pandemia?

Thomas D’Haese (intensivista): “Os fatos mais marcantes que eu vivenciei envolveram o cuidado de colegas, médicos e enfermeiros que adoeceram, alguns com quadros graves. Aquela pessoa que estava do teu lado batalhando, na semana seguinte está deitada num leito de UTI. É muito pesado. Tivemos alguns colegas que desenvolveram a forma grave da doença. Mas posso dizer com muito orgulho que não perdemos nenhum colega aqui em Ponta Grossa até o momento”.

Erika Rodrigues (médica plantonista): “Vários momentos. Perdemos pessoas próximas. Tivemos um residente grave na UTI que bravamente sobreviveu e se recuperou”.

Marcos Marochi (médico plantonista): “O mais marcante foi um paciente que chegou no início da pandemia com covid. Ele veio de outra cidade dos Campos Gerais e teve um quadro extremamente grave. Ele ficou cerca de 90 dias conosco. Houve vários momentos de piora, de quase nós desistirmos. Mas a equipe toda permaneceu lutando. Depois de quase 90 dias foi restabelecido, ficou em bom estado e teve alta”.

Como foi o Natal e como será a virada de ano dos profissionais da linha de frente?

Thomas D’Haese (intensivista): “São iguais. Em casa, mas de sobreaviso. Se algo acontecer, tenho que estar disponível”.

Erika Rodrigues (médica plantonista): “No Natal estive na clínica covid até o domingo. Presencial pela manhã e sobreaviso por 24h. Só estou com meu marido tanto no dia de Natal quanto no dua do Ano Novo. Por prudência não passarei com o restante da família. Passei o ano todo sem ver os amigos e pouco vi a família. Mas é nossa obrigação zelar pelos outros”.

Marcos Marochi (médico plantonista): “No Natal estive na minha casa ao lado da família até às 19h do dia 25. À noite estive na UTI covid. Foi como sempre. Na UTI covid não tem parada. No Ano Novo vamos nos reunir com a família em número pequeno de pessoas e com os devidos cuidados. No dia 1° à noite estarei de plantão na UTI Geral”.

* Por Felipe Liedmann

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