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O périplo de Doíldo Cansado, paciente do PUS (uma ficção verossímil)

Doíldo Cansado era professor no interior, usuário do PUS, o Programa Unificado de Saúde do estado. Vindo de outro estado, Doíldo estranhou a sigla, que lembrava coisa purulenta. Será? Mas fez fé quando viu que a constituição estadual dizia que saúde de qualidade era um direito dos servidores.
Quando Doíldo e sua família precisaram do PUS, veio a desconfiança. Para consulta com um clínico, eram dez dias de espera. Com um especialista, até três meses. E para marcar a consulta, tinha que ter paciência, discar umas dez vezes no fone 0800 para que atendesse. No dia da consulta, não era raro que o médico não aparecesse. Questionadas, as atendentes mentiam uma desculpa inventada.
E o local de atendimento! Um corredor estreito com dez consultórios, os pacientes amontoados, a maioria de pé, ao longo do apertado corredor sem ventilação. Uma festa para as doenças contagiosas. Um desrespeito para os servidores, a maioria pacientes idosos. Eram marcados vinte pacientes no mesmo horário, daí o corredor estar sempre lotado.
E os médicos, então! Deveriam chegar às duas horas, mas chegavam às três, ou até mais tarde. Para compensar, algumas consultas duravam dois minutos, logo todos eram atendidos. Com tal rapidez, os pacientes nem eram olhados no rosto. E a troca de médicos era frequente. E quando se iam os médicos, misteriosamente os dados do paciente no sistema do PUS iam junto, o novo médico começava do zero.
Doíldo e sua família foram descobrindo que os médicos do PUS utilizavam expedientes estranhos. Registravam no sistema procedimentos diferentes daqueles que iriam fazer. Quando questionados, explicavam que era para receber mais por eles. E logo avisavam: o paciente teria que pagar pelo anestesista, pelo instrumentista, pelos curativos… A esposa de Doíldo uma vez teve de apresentar-se para um procedimento com cópia do estatuto do PUS, que dizia que o programa não tinha nenhum custo para o usuário. Senão, teria de pagar os tais extras.
A espera pela realização do procedimento era outra prova de paciência. Às vezes, apesar de já aprovado pela auditoria, ele nunca chegava a ser agendado. Se Doíldo não apelasse para a ouvidoria do PUS, que ficava na capital, poderia ficar esperando para sempre. Algo parecido acontecia com ultrassonografias, tomografias, etc., que chegavam a ser marcadas para dali a seis meses, ou até mais. Em resumo, entre o dia da ligação para a consulta inicial, a consulta com o especialista, os exames, o retorno com o especialista, a auditoria e enfim a realização do procedimento, decorria mais de um ano! Doíldo dava graças se sobrevivesse àquele périplo!
Certa vez, a trabalho na capital, Doíldo precisou de um atendimento de emergência. Ele não ouvia e sentia vertigens e dores. Depois de uma resignada romaria entre postos de atendimento do PUS e hospitais, e um atravancado emaranhado burocrático, ele compreendeu que não seria atendido nunca. Dependeu da boa vontade de um jovem médico, que o atendeu clandestinamente, sem registro no PUS.
Então começaram a falar que o PUS iria tornar-se pago, não mais seria gratuito. Contrariando a constituição do estado. A essa altura, Doíldo e sua família ficaram até com uma ponta de esperança e alívio. Será que pago iria prestar?

Mário Sérgio de Melo
Geólogo, Professor do Departamento de Geociências da UEPG

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