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Uma aula de cinema e roteiro

Tiago Luiz Bubniak

 

 

 

Margaret Thatcher, já idosa e longe do poder, sai para comprar leite. De volta para casa, toma café com o esposo Denis, que está sentado em sua frente. Durante a refeição regada a comentários como o aumento do preço do leite (detalhe importante para alguém que, como governante, buscou controlar a inflação), Margaret é surpreendida por sua ajudante, que observa: Aí estão vocês. Margaret (interpretada por Meryl Streep) ratifica: Sim, aqui estamos. Mas nessa altura, segundos antes de os créditos iniciais A Dama de Ferro nomearem o filme, o espectador já terá tomado ciência de que a cadeira em frente da ex-primeira-ministra britânica está… vazia.  

Contar uma história é como deparar-se com incontáveis novelos emaranhados e optar por puxar uma das tantas pontas possíveis. A escolha do roteirista Abi Morgan transposta do papel para as telas pela diretora Phyllida Lloyd foi esta: apresentar uma Margaret Thatcher com alucinações (segundo relatos da filha Carol, a dama de ferro está sofrendo de demência). A decisão do roteirista é apenas uma das muitas qualidades da obra. Ao começar seu relato mostrando o hoje, Morgan investe na estratégia de usar permanentemente recursos de flashbacks. O resultado? Competentes transições entre presente e passado que enriquecem o desenrolar da narrativa. Esse trânsito temporal exigiu consideravelmente dos responsáveis pela maquiagem, que acabou premiada com o Oscar 2012.

Retratar um personagem histórico no cinema não é tarefa das mais fáceis. Sobretudo quando esse alguém foi a primeira mulher a dirigir uma democracia moderna, a mulher mais poderosa do século XX, a dama de ferro assim chamada por seu comportamento inflexível. Talvez por isso, Lloyd e Morgan logo trataram de lançar para a imprensa, às vésperas do lançamento do longa, que nunca tiveram a pretensão de fazer uma cinebiografia ou um filme sobre política. Alegam ter buscado produzir uma história shakespeariana sobre poder e perda do poder. Admitam ou não, trata-se, sim, de uma cinebiografia. Com a preocupação de encaixar uma personagem tão controversa em menos de duas horas de filme, mas, ainda assim, uma cinebiografia. Estão na película a oposição da primeira-ministra aos sindicatos, seu apoio às privatizações e o forte incentivo à Guerra das Malvinas contra a Argentina. Estão, também, o ódio e o amor do povo. E o fato de ter governado entre 1979 e 1990, ano em que renunciou graças a desentendimentos com o próprio partido, o Partido Conservador. 

Não se discute aqui recortes históricos e políticos feitos pela obra. O que se discute é cinema. E, como tal, A Dama de Ferro é um primor. Uma verdadeira aula de cinema e roteiro. É mais um caso de trabalho no qual tudo é cuidadosamente refletido e, a qualquer momento, o espectador é convidado a tecer relações entre o que está vendo ou ouvindo agora e outro pequeno – ou nem tanto – detalhe visto ou ouvido anteriormente. A xícara sendo lavada no fim do filme é um grande exemplo dessa afirmação.

Uma das cenas mais eloquentes de toda a sequência retrata a chegada de Margaret Thatcher à Câmara dos Comuns, em 1959, sua primeira vitória na carreira política. A câmera passeia mostrando dezenas de pares de sapatos masculinos e, subitamente, surge um único par feminino. Em outro momento, uma conversa aparentemente banal a respeito de direção veicular revela-se uma metáfora sobre governabilidade.  

Estamos diante de uma cinebiografia respeitável, que vai muito além das famigeradas vitórias do Globo de Ouro na categoria Melhor atriz em filme dramático ou do Oscar nas categorias Melhor atriz e Melhor maquiagem. Estamos diante de um filme que, independentemente de suas pinceladas históricas ou políticas, exige de nossa sensibilidade. Uma obra na qual uma cadeira vazia ou uma simples xícara sendo lavada têm muito a dizer. 

 

 

 

O autor é jornalista.

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