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Cem Anos da Mestra: o legado vivo de Dona Chiquinha

Para ela, o tempo nunca conjugou verbos no passado. Dona Chiquinha é presente — não apenas como memória, mas como presença viva e insistente nas esquinas de Jaguariaíva, nos corredores escolares, nas lembranças de cada ex-aluno. Cem anos se passaram desde que nasceu Francisca Maccagnani Carazzai, em Palmeira, filha do ex-padre Ângelo e de Estelita. Cem anos, e ainda assim parece que ela acabou de sair de uma sala de aula, com um livro debaixo do braço e a alma repleta de esperança.

Filha de um homem que abandonou o púlpito para viver o amor e a paternidade, Francisca já nasceu desafiando convenções. Foi entregue aos cuidados dos avós aos cinco meses. Peralta, cheia de vida, aos três anos já estava numa escola em Piraquara, onde teve como primeiro mestre o lendário Ignácio Alves de Souza Filho. Ali, pequenina diante das carteiras, começou a se moldar a gigante que viria a ser. Ainda menina, conheceu o interventor Manoel Ribas. O destino, caprichoso e atento, já anotava seus passos com tinta indelével.

Com a morte da avó, reencontrou os pais em Palmeira. Vieram os estudos, o ciclo complementar, o ginásio, e também a dor: perdeu a mãe em plena juventude. Em 1952, mudou-se com o pai para Jaguariaíva. Era o retorno silencioso da filha à terra que já havia conhecido a força do pai. Mas, agora, era ela quem fincaria raízes.

Começou substituindo o pai acidentado como professora de Latim no Ginásio Estadual de Jaguariaíva. A partir dali, a sala de aula foi apenas um dos palcos onde ensinaria. Dona Chiquinha não lecionava — ela encarnava o verbo educar. Com firmeza, com delicadeza, com humor. Deu aulas no Grupo Escolar Izabel Branco, no Colégio Estadual Rodrigues Alves e marcou época no CERA, onde deixou sua assinatura pedagógica em letras maiúsculas.

Foi fundadora de um dos grupos mais encantadores da história cultural local: o Grupo de Teatro Amador Escolar. Subia ao palco como o Palhaço Pimentão e fazia rir com inteligência e ternura. Porque ensinar, para ela, também era arte. Também era riso. Também era encanto.

E quando se tornou Inspetora Regional de Ensino, em 1965, sua missão tomou outras estradas — literais e metafóricas. Fundou colégios, percorreu comunidades rurais montada em jipes, carroças ou a pé. Nada impedia sua marcha. Onde houvesse uma lousa, uma criança e um desejo de aprender, ali estaria Dona Chiquinha.

Mas talvez o traço mais nobre de sua biografia não esteja nos cargos que ocupou, mas nas portas que abriu. Literalmente. Acolheu normalistas vindas de fora em sua própria casa, com cama, prato de comida e palavra amiga. Não pediu nada em troca. Não quis holofotes. Fez por amor. E quem age por amor, deixa raízes que nem o tempo ousa arrancar.

Mesmo em meio ao turbilhão, fez Letras na UEPG. Concluiu o curso cuidando do pai adoentado e lecionando ao mesmo tempo. Perdeu o pai em 1977, aposentou-se em 1985, mas jamais se desligou da vida acadêmica, da leitura, da reflexão. Continuou sendo mestra, mesmo sem quadro ou giz.

Recebeu honrarias. Recebeu homenagens. Mas o que mais lhe tocava era o reconhecimento silencioso: o abraço de um ex-aluno, o bilhete emocionado de uma professora novata, o respeito reverente de uma cidade inteira que aprendeu a vê-la como símbolo. Não apenas da educação, mas da bondade.

Dona Chiquinha partiu em 19 de abril de 2018, aos 92 anos. Partiu com a serenidade dos que sabem ter cumprido a missão. Mas ninguém morre quando se torna centelha. E ela é isso: uma luz perene no imaginário jaguariaivense. Um elo entre o que fomos e o que ainda podemos ser.

No centenário de seu nascimento, Jaguariaíva não faz apenas memória — celebra a permanência. Dona Chiquinha segue viva nas palavras bem ditas, nos sonhos despertos, na coragem de ensinar. Porque há pessoas que não pertencem ao tempo. Pertencem à história. E ao coração de um povo.

*O autor é ocupante da cadeira nº 4 da Academia de Letras dos Campos Gerais.

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Escrito por Rafael Gustavo Pomim Lopes*

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