Por Pedro Miranda
Laerte-se (Lygia Barbosa, Eliane Brum, 2017). “A gente está sempre em processos de mudança” é a última frase deste ótimo documentário, presente no catálogo da Netflix. Não por coincidência, porque ela resume o filme todo, que não busca rótulos ou certezas. Laerte, cartunista em atividade há quatro décadas, esteve em evidência nos últimos anos por duas razões completamente distintas: em 2005, perdeu o filho Diogo num acidente de carro; em 2010, revelou-se travesti. No presente filme, ambos acontecimentos se entrelaçam, não num sentido de causa e efeito, mas como constituintes de uma mesma experiência de vida, cheia de ocorrências que moldaram Laerte de um jeito único (e que pessoa não é diferente de todas as demais?).
Ao longo das entrevistas, as charges e desenhos da Laerte espelham suas ideias e inquietações, comprovando sua difícil busca pelo autoconhecimento. Àqueles que têm, ou pensam que têm, certeza do que são não apenas no que se refere a gênero, mas também nos aspectos social, profissional, familiar, dentre os outros que nos caracterizam pode parecer difícil, quando não impensável, uma pessoa de 66 anos reconhecer que não está plenamente definida. Moro aqui há 12 anos, e ainda não resolvi o que quero colocar ali. É tudo como um provisório eterno, diz Laerte sobre sua residência, sabendo que, na verdade, fala de si mesma. Ao mesmo tempo em que não quer operar o sexo, também deseja colocar seios, numa tentativa de exercer cada vez mais estas novas possibilidades, o que é refletido na composição liberta do documentário (inclusive em relação à nudez da Laerte). Quando comecei esta passagem, sabia que não ia virar mulher em termos biológicos, mas, mesmo assim, isso me trouxe uma grande alegria, por poder exercer esta liberdade, e ampliar minha fronteira, a tal ponto que não preciso mais estar nos país dos outros.
E é exatamente o país da Laerte que conhecemos, pois as diretoras fazem uma escolha inteligente de ter apenas ela como entrevistada. As impressões dos pais, filhos e amigos da Laerte não são colhidas, porque o objetivo não é compreender a visão dos demais sobre este processo, mas apenas daquela que o realiza, deixando-a como guia do seu próprio território. Mas quem é Laerte, afinal? Nem Laerte sabe, até porque, no processo, deixa de ser sujeito para se tornar verbo. Em constante alteração, variação… e (trans)formação.