A história do povo brasileiro não foi apenas de trabalhos, dores e sofrimentos. Um povo tem suas lutas e sacrifícios, mas também seus gozos, prazeres e alegrias. As festas, os folguedos, os jogos, as brincadeiras fazem parte da rica cultura popular do país. É impossível explicar o Brasil sem compreender pelo menos três de suas paixões coletivas: o futebol, o carnaval e o jogo do bicho.
Surge o jogo do bicho
O bicho nasceu com a república, nos fins do século 19; foi inventado na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. Tem uma origem nobre, de sangue azul. Contam os cronistas que o seu criador foi um certo barão de Drummond, amigo pessoal de Pedro II. O barão era proprietário de um jardim zoológico em Vila Izabel.
Busca por financiamento
Com a proclamação do novo regime político, o zoológico, que até então recebia recursos do governo imperial, subitamente ficou sem verbas de custeio. O barão, para não fechar a empresa e não deixar os animais morrerem de fome, teve uma ideia original: cada visitante passou a receber, como ingresso, um cartão com a figura de um animal diferente. Ao final da tarde, realizava-se o sorteio; quem portasse o animal sorteado ganhava uma pequena soma em dinheiro.
O sucesso do jogo
A invenção do barão foi um sucesso. O número de visitantes rapidamente aumentou; as pessoas iam a Vila Izabel não mais para ver os animais, mas tão somente apostar e participar dos emocionantes sorteios.
Associados a números, as formas de aposta tornaram-se mais complexas, com múltiplas combinações e variados arranjos. Como uma febre, o jogo expandiu-se pela cidade e se difundiu pelo país. Em qualquer birosca podia-se apostar. Os cronistas, a exemplo de Luiz Edmundo e Machado de Assis, levaram a fauna e os jogadores para as letras de jornais e livros. Os cartunistas fizeram a festa gráfica com os bichos a fugirem do zoológico e se espalharem por casas e ruas.
Combate à jogatina
A polícia, desde o início, tentou dar combate e extinguir a jogatina, sem sucesso. As leis que a proibiam, nasciam letra morta. Os moralistas (um deles Rui Barbosa) teceram longos discursos condenatórios, com argumentos econômicos, médicos, jurídicos, éticos. Tudo em vão. O bicho, organizado e explorado pelas máfias de “banqueiros”, tornou-se o hábito que se conhece. Cientistas sociais como Gilberto Freyre ensaiaram diversas explicações, todas insuficientes.
A força do bicho
A força do bicho, com quase um século e meio de história, tem muitas razões de ser e de permanecer. Sempre foi jogo barato, acessível aos pobres, quer dizer, a grande maioria da população. A função de cambista ou apontador tornou-se, para muitas pessoas igualmente pobres, uma forma de obtenção de renda: bico, biscate, viração. Os grandes bicheiros tornaram-se mecenas de escolas de samba, clubes de futebol e partidos políticos.
A contravenção
As tentativas de regulamentação (atrelando-o ou não às loterias estatais) não foram adiante. Entrou para a lei das contravenções penais, tolerado mas não muito, conforme o conveniente para a manutenção da ordem e do “sistema”. Na clandestinidade, sempre alimentou a indústria da corrupção que prosperou com a república, na democracia e nas ditaduras, em todas as esferas da política e em todos os níveis de governo.
Prática cultural lúdica
Mas, sem dúvida, a potência do bicho, enquanto prática cultural lúdica, reside no fascínio que exerceu (e ainda exerce) sobre a imaginação das gentes. Com o passar do tempo, alimentou todo um folclore próprio, misturou-se a crenças religiosas e práticas mágicas; penetrou o inconsciente, invadiu os sonhos.
As operações matemáticas e as práticas adivinhatórias para descobrir “o bicho que vai dar” formam uma lista que não cabe aqui. Se o jogador “anda caipora” (sem sorte), recorre a orações, simpatias e mandingas para atrair a boa fortuna e afastar o azar. As benzeduras, os amuletos, as interpretações dos sonhos como fonte de palpites entraram para a enciclopédia das mil e uma artes da cultura popular.
O bicho já foi considerado crime, contravenção, vício, fator de doença mental, sinal de atraso cultural (mentalidade “pré-lógica”), etc. No vocabulário sociológico de Marcel Mauss, talvez possa ser explicado como um fato social total; na linguagem da mística, talvez seja um mistério.
*Antonio Paulo Benatte possui graduação em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, 1993), mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, 1996) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2002). Tem experiência docente na área de História, com ênfase em Teoria e Metodologia da História e com publicações na área. É professor associado na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), na área de Teoria da História.
