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O “precariado” e a nova luta de classes

 

Elísio Estanque

 

Parece evidente que as recentes transformações em curso no mercado de trabalho estão a redesenhar as formas tradicionais do conflito social e das relações entre classes. O velho operariado desagregou-se e entrou em implosão. A chamada classe média vive deprimida, endividada e a caminho do empobrecimento. E nesse processo de recomposição emergem novas camadas de trabalhadores, entaladas entre o desemprego crescente e as novas formas de trabalho precário, incerto e mal pago. Serão estes segmentos da força de trabalho qualificada, instável e precarizada os porta-vozes de novos sujeitos da conflitualidade? Estaremos a assistir na Europa e no mundo a uma nova recomposição da luta de classes?

O recente livro Precariat (de Guy Standing) constitui uma análise muito instigante sobre o assunto. As atuais modalidade de trabalho precário e sem direitos agregam conjuntos muito diversos e dispersos de grupos sociolaborais, marcados por recursos e subjetividades muito distintos e incertos. O rumo que perseguem está por definir, mas algo de novo está ocorrendo. Olhando, hoje, o edifício da estratificação social pode dizer-se que este precariado reúne pessoas com trajetórias muito diferenciadas, desde as camadas em declínio da classe média assalariada a frações do velho operariado, grupos excluídos, desempregados, minorias migrantes e novos segmentos juvenis da força de trabalho qualificada e precária.  

Como é reconhecido por muitos observadores, o quadro social a que nos habituamos na segunda metade do século XX perdeu sentido. Desfez-se no ar o modelo com que sonhou a social-democracia europeia: a ideia de uma elite competente e qualificada que geria por mérito próprio os destinos das instituições, da economia e da sociedade, seguida por uma classe média zelosa que lhe servia de exemplo e principal sustentáculo e, na base da pirâmide, uma classe trabalhadora dialogante (através dos seus sindicatos), beneficiando de políticas sociais bondosas e com expetativas de ascensão social. O que vem a seguir não se sabe.

Apagou-se a miragem de um sistema meritocrático e de uma sociedade atomizada e consumista. No seu lugar ganha nova evidência a realidade da luta de classes. Uma luta de classes que embora não sendo dicotômica todos os dias nos revela a crueza dos interesses antagônicos. Uma sobreclasse global que multiplica tanto mais a sua riqueza quanto mais estreita for a camada dos mais ricos dos ricos. A extração de mais-valia deixou de ocorrer através do trabalho excedente do operário fabril para ocorrer à velocidade cibernáutica em que opera o capitalismo financeiro, usando e multiplicando o dinheiro, juros, ações e capitais circulantes (a custas do anómimo depositante) como principal lubrificante do seu enriquecimento supersónico.

Enquanto isso, uma parte cada vez mais volumosa da antiga classe média e seus descendentes mergulha no novo precariado. Este, não corresponde ainda a um novo sujeito coletivo, visto que é composto, sobretudo, por camadas dececionadas e vulneráveis, unidas pelo sentimento de indignação e raiva contra o status quo e os políticos incompetentes ou corruptos que alimentam o capitalismo global. Uma parte destes descontentes poderá alimentar revoltas sem horizonte ou servir de alimento a manipulações populistas e à demagogia do discurso neo-fascista (como de resto já está a acontecer), mas está em aberto o seu potencial emancipatório.

As lutas defensivas e materialistas protagonizadas pelo velho sindicalismo do operariado em declínio encontram-se esgotadas, muito embora o contributo dos seus quadros mais críticos possa ser importante se souberem interpretar – e incentivar, em vez de segregar – os novos movimentos sociais e a luta do precariado. Essa luta é, em primeiro lugar, pelo reconhecimento (por uma nova identidade coletiva), em segundo lugar, pela representação (novas estruturas associativas para além dos partidos, se bem que não necessariamente contra eles), e, em terceiro lugar, pelo direito ao futuro. Se os movimentos pós-materialistas deram a primazia à cultura, ao ambiente e à igualdade de género o novo precariado poderá ganhar consciencia de si se souber reunir as bandeiras culturais, ambientalistas e identitárias com as lutas materiais pelo emprego e pelo direito ao futuro.

Um futuro onde a segurança econômica seja sinônimo de autonomia (no uso do tempo e do lazer), criatividade e qualidade de vida (na defesa do patrimônio e da ecologia), partilhada nas comunidades locais e recorrendo à democracia participativa (e à economia solidária).

Ao contrário do velho proletariado, a luta de classes de hoje não visa nenhuma revolução redentora nem se opõe à democracia burguesa. Antes procura ampliá-la e reformá-la radicalmente, rompendo com um paradigma econômico esgotado (o neoliberalismo) e abrindo caminho a um projeto europeu, federalista e profunbdamente democrático, que dê sequência aos velhos valores progressistas e devolva a esperança às novas gerações. 

 

 

O autor é sociólogo, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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