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Eu tenho um filho

José Alexandre

 

 

 

A frase do título acima foi usada pelo professor de comunicação Eugênio Bucci num artigo seu que li há anos atrás, faz inferência ao famoso discurso do militante negro norte-americano Martin Luther King I have a dream. Mas agora sou eu quem o diz, eu tenho um filho. Ele ainda tem 14 meses e continuo temendo mais que nunca observando o mundo em que vai ter de viver por toda sua vida.

Há algumas semanas atrás Ponta Grossa ficou chocada pelo crime de trânsito que matou a professora Heloneida Iurk. É tipo de notícia que vemos, nos sentimos indignados e logo em seguida esquecemos. Nesse caso, o esquecimento pode ser um mecanismo de nossa memória para conseguirmos levar nossas vidas adiante, no caos desordenado como é o nosso país com suas leis. Esquecemos para viver e a vida gira, mas nesse caso gira como uma roda e a lembrança insiste em voltar, pois eu tenho um filho.

Bucci dizia em seu texto, ter um filho é como ter um sonho. Faz sentido, pois afirmava sonhar um mundo melhor para o seu. Certamente num bom mundo para se viver as pessoas não correm o risco de ter a vida ceifada prematuramente por quem tem o hobby? de praticar, rachas de rua furando sinais de trânsito. Temos que educar nossos jovens para a paz no trânsito? Sim e já o fazemos, em nossas escolas e por meio das campanhas publicitárias. Uma que vi ao ar recentemente trazia o depoimento de um pai que perdeu seu filho em crime de trânsito semelhante.

Acredito, entretanto, que a educação das escolas e das campanhas publicitárias não bastam. O ato de dirigir um carro, em alta velocidade, bêbado e atravessando sinais vermelhos como o fez o então deputado estadual Fernando Carli Filho, em 2009 e o filho do empresário Eike Batista recentemente, não é coisa de uma pessoa não educada ou ainda sem consciência, é algo que está ligado ao caráter do indivíduo. Nem todos os jovens que se embriagam em suas noitadas colocam as suas vidas e a de outras pessoas em risco. Risco de suicídio e de assassinato.

Ainda que seja assim, as campanhas de diversos tipos devem servir para algo. Vendo o depoimento do pai grisalho que perdeu seu filho, na dita campanha publicitária, lembrei-me de quando comecei a me questionar sobre a morte, ainda na infância. Para uma criança a sensação de finitude pode ser aterradora. Nada me deixava tranquilo, nem mesmo a possibilidade do paraíso cristão, exceto a ideia de que se tivesse um filho poderia prosseguir com minha vida na sua, uma espécie de sensação de imortalidade. Eu teria um filho.

Suposto leitor, nem imagina satisfação que tive, já adulto, ao deparar com um pensamento do filósofo Emmanel Levinas, segundo o qual uma das formas de enfrentar a morte é a paternidade. O filho não é propriedade nem posse, mas o pai é o filho. A paternidade pode fazer-nos então enfrentar a finitude da morte, de maneira que o pai pode continuar vivendo no filho. Talvez por isso o semblante de quem perde um filho é extremamente triste, é o semblante de quem não vive, pois perdeu uma maneira de continuar vivo de alguma forma mesmo após perecer.

Deve ser essa a sensação do pai depoente da campanha publicitária, dos pais dos jovens mortos pelo então deputado Fernando Carli Filho, dos pais do ciclista morto pelo filho do empresário Eike Batista, e dos pais da professora Heloneida Iurk. Punições exemplares para criminosos de casos desse tipo são necessárias e também serão brandas, pois não trarão de volta os jovens mortos e nem darão vida aos que ficaram.

Para o restante da população resta conviver com o horror de que a qualquer momento, andando de carro, de bicicleta ou à pé pode-se perder a vida, pois algum político, algum filho de empresário milionário ou de trabalhador pode se embriagar, resolver fazer um racha e atravessar o sinal vermelho que diz pare. Não é um mundo seguro para se dizer eu tenho um filho, ainda que fazê-lo seja motivo de muita alegria.

 

 

 

 

O autor é professor de história

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